Nesta vida não tenho muitas conquistas materiais, porém as histórias são diversas. Quem eu seria sem minhas histórias? Não seria eu.

domingo, 9 de março de 2008

A Aventura Galega

Porto, janeiro de 2003

A semana tinha começado um pouco triste, a cada dia que passava um amigo partia pra sua casa, ia passar o Natal com a família… depois de acompanhar uma escocesa amiga minha até o ponto do ônibus que vai pro aeroporto, que foi a última de meus amigos a voltar pra casa, que estava toda feliz porque iria ver a família, matar as saudades… eu tive vontade de mergulhar num buraco qualquer, esperar ali o Natal passar e depois sair sem que nada de especial tivesse acontecido…
Neste mesmo dia parti, com mais um brasileiro e muito pouco dinheiro no bolso, pra minha Aventura Galega. Não tinha idéia do que iria acontecer, apenas gostaria de passar por La Coruña, Santiago de Compostela e uma parte do litoral galego chamado Costa da Morte.
No final da Viagem, mesmo não indo a todos os lugares que tinha pensado, mesmo tendo "trabalhado" duro em boa parte da viagem, mesmo com a viagem tendo ficado um pouco mais curta do que pensava, tinha a consciência de que esta foi umas das viagens mais incríveis que eu já fiz.
Eu percebi também que a idéia de mergulhar em alguma coisa não era tão má assim. Mas ao invés de um buraco eu me "joguei" num mar cheio de “CHAPAPOTE”.

La Coruña

Foi onde a viagem realmente começou... lá já deu pra ver uma grande diferença com relação a Portugal. Na Espanha as pessoas se olham, se encaram. Se você na rua olha pra alguém, este alguém te responde olhando também. Isto pode parecer apenas um detalhe, mas pra quem já está por aqui a quase 4 meses... outra coisa que pra um brasileiro faz muita falta, e que em La Coruña deu pra matar um pouco das saudades, foi de conhecer e conversar com pessoas na rua, coisa que aqui em Portugal é bem difícil de fazer. Eu com este meu portunhol fantástico conseguia muito bem me comunicar por lá.
Ficamos duas noites nesta cidade, que pra falar a verdade, pelo menos pra mim, não tem nada de especial, ou melhor, até então não teve. Na primeira noite nós ainda não tínhamos descoberto que as três pousadas da juventude, que ficavam em A Coruña (tinha procurado na internet), ficavam em outras cidades do “estado” de A Coruña e não na cidade de La Coruña. Mas como procuramos estas benditas pousadas até muito tarde e logicamente não as encontramos, acabamos tendo que nos virar pra dormir.
Chegou uma certa hora que nós desistimos de procurar as pousadas. Resolvi perguntar pra um senhor se ele sabia de um lugar qualquer pra passarmos a noite, com a ilusão de que ele pudesse indicar uma destas pensões bem fuleras, ou qualquer coisa do gênero, pois não queríamos gastar “muito dinheiro”, pois o dinheiro era curto e já era muito tarde pra pagar um hotel e dormir pouco. Qualquer coisa seria mais aceitável que pagar pra dormir algumas horas! O senhor parou... pensou um pouco e disse: “Há uma floricultura logo ali, que tem uma marquise, e como não está muito frio, vocês podem dormir ali esta noite”
Pois é... não pensei duas vezes, procurei um cantinho, abri meu saco de dormir, abracei minha mochila e tive uma bela e curta noite de sono até acordar completamente gelado no começo da manha.
No outro dia conhecemos a cidade, que é bem bonita, mas como já falei não foi desta vez que descobri ali algo de muito especial. Ficamos mais uma noite, desta vez em uma pensão e no dia seguinte fomos pra Malpica.
Malpica é uma cidade muito pequena que vive, ou melhor, vivia da pesca até o desastre do Préstige, um petroleiro que se afundou nesta região há dois meses, causando um dos mais graves derramamentos de petróleo da história. O óleo que saiu deste petroleiro cobriu todo o litoral desta região de negro.
Esta cidade possui uma geografia das mais interessantes que já conheci, pois fica num pequeno cabo e por isto, mesmo sendo muito pequena, possui duas praias, a “de Fora”, que recebe o mar aberto, é linda. O litoral de lá é todo recortado, com muitas encostas, rochedos e ilhas.
Na outra praia, a “de dentro”, é o porto, que pelo que me informei já foi um importante porto baleeiro... na maior parte da cidade, pode-se cortá-la, ou seja ir de uma praia a outra, com apenas alguns metros, ela parece uma salsicha...
Ficamos ali duas noites, dormíamos no ginásio municipal, onde ficava a maioria dos voluntários que estavam na cidade, que como nós vieram ajudar a retirar parte do óleo das praias e rochedos pra tentar acelerar a recuperação do litoral. Alguns voluntários que ficavam por muito tempo na cidade passavam a ser acomodados na casa dos próprios pescadores e comerciantes. Foi nesta cidade onde tivemos o primeiro dia de trabalho como "chapapoteiro".
Aqui pude ver como seria interessante realizar este trabalho, pois iria conhecer muita gente, muita mesmo. O mais louco é que são pessoas completamente diferentes umas das outras, vindas de vários cantos da Europa, e algumas vezes do mundo, que chegaram ali por diferentes caminhos, mas com um mesmo objetivo.
Todos os voluntários, pescadores, comerciantes e moradores locais que participavam dos trabalhos de limpeza se reuniam pra comer no mercado do peixe da cidade. Afinal, como a pesca estava proibida tiveram que encontrar outra função importante pra aquele lugar, assim ele virou o restaurante. O local foi apelidado de RESTAURANTE CHAPAPOTE... tinha até uma grande faixa na entrada. Chapapote é o nome dado por pescadores e voluntários ao óleo que é retirado das praias.
O ginásio era uma bagunça, quando entrei lá pela primeira vez ele estava vazio, era o meio da tarde e por isto todos estavam trabalhando. Lembro-me de ao ver aquele monte de mochilas e sacos de dormir, espalhados por toda a quadra, tentar imaginar o que levou cada uma daquelas pessoas até ali, o que elas pensavam... fui comer alguns "bocadillos" e depois tomar um banho.
Numa ocasião como esta, e pelo tipo de geste que se propõe a fazer isto, o intercâmbio entre as pessoas acontece muito facilmente... logo os primeiros voluntários começaram a chegar e eu pude perceber melhor o tamanho da aventura em que eu tinha me metido.
Era impressionante o relato das pessoas que voltavam do trabalho. Lembro-me de um deles, feito por um cara de Barcelona completamente louco (que pra mim deve ter usado muito droga e por isso ficou meio “sequelado”). Ele começou a contar do trabalho e do quanto era difícil trabalhar. Segundo ele, por mais que se tirasse chapapote durante o dia, no final parecia que não se tinha tirado nada, isto quando no dia seguinte não chegava mais. Este relato do trabalho não foi muito diferente dos outros, mas aquela foi a única vez que o cara me pareceu sóbrio em dois dias de convivência.
A principal mancha de óleo já não se encontra mais em águas espanholas, mas ainda restam muitas pequenas manchas, pequenas quando se vê, mas que fazem muito estrago quando chegam a alguma praia.
O grupo de voluntários de Malpica com quem eu mais me envolvi era formado na maioria por Bascos (o País Basco é uma região da Espanha que tem uma identidade própria mais definida que muitos paises no mundo). Eles eram muito gente boas, todos revolucionários. Eles me disseram que eram “punks”, não na vestimenta e sim no sentimento, pois segundo eles há uma “moda punk” que não possui ideologia. Até aquela altura eu nunca tinha me imaginado convivendo e fazendo parte de um grupo como aquele. Por aqueles dias até eu virei punk.
No dia 23, depois do dia inteiro de trabalho e de uma fracassada tentativa de tirar o cheiro do Chapapote do nariz, através de um longo banho e de troca de roupas, fomos jantar no Restaurante Chapapote e de lá fomos a um café.
Na Espanha, antes de "sair pra noite" sempre se vai aos cafés, mas é lógico, nunca pra beber café. Eu como sempre fui pra acompanhar. Depois fomos a um outro lugar pra dançar, ficamos até as 6 da manha.
Foi alucinante, ficamos nuns botecos na beira da praia, eu me diverti pra caramba. Eu realmente fiz parte daquele grupo de pessoas e conseguir participar da maluquisse deles. Dançávamos umas músicas bem loucas. A cada momento que passava um deles caia e ia carregado por um menos bêbado pra “casa”... ao final da noite já não sobravam muitos. Esta foi, com certeza, uma das noites mais inesquecíveis da minha vida. Mas todos os motivos não cabem nesta história.
Durante a balada fui convidado a cear com eles na noite seguinte, noite de Natal. Eu quase fiquei, mas decidi, enquanto eu caminhava de volta ao alojamento, que ao acordar eu tomaria a estrada novamente e partir em busca por novas aventuras...
Acordei as 8:30h, horário combinado pra levantar e seguir viagem, com a certeza de querer partir. Acordei o Chico e fomos a caminho do desconhecido.
Íamos andando pra um Farol, que ficava a uns 12 km dali. No caminho cheguei a ficar um pouco triste, por não ter pelo menos me despedido daquelas pessoas, as quais eu tinha a certeza de nunca mais voltar a ver... já estávamos caminhando a um bom tempo por uma pequena estrada que costeava o mar quando resolvi ir a uma praia tirar uma foto. Enquanto voltava ouvi o barulho de um carro se aproximando, era um carro da empresa que coordenava os trabalhos de limpeza. Pra minha surpresa, quem eram os voluntários que estavam lá dentro?
Eram os Bascos. Eles estavam indo trabalhar e com a mesma cara de sono que a minha, pois como eu, não tinham dormido quase nada. Foi uma festa. Conversamos um pouco e nos despedimos. Quando o carro já andava e eu já estava de novo na estrada um deles gritou: “grande Felipe, Feliz Navidad”...eu só pude rir... e continuar no meu caminho.

Punta de Nariga

É onde fica o Farol que estávamos indo conhecer. O lugar é fantástico, pra quem conhece, se parece um pouco com o parque nacional das Agulhas Negras, o tipo de vegetação, o tipo de rochas que compõem o relevo. A diferença é que a beira das montanhas está o mar e delas podemos ter uma visão fabulosa da Costa da Morte. Personagem presente nesta parte da viagem foi o vento... havia horas que era difícil ficar parado, o vento nos arrastava, isto porque o dia estava bom! Fiquei imaginando um dia ali com tempestade ou algo parecido.
Nós pegamos várias caronas nesta viagem. Por sermos voluntários e estar próximo ao Natal, chegamos a ganhar até presente. Uma barra de chocolate de meio quilo. Um outro cara deu uma esticadinha de uns 40 km pra nos deixar mais perto de onde iríamos.
As pessoas desta região são extremamente gratas com os voluntários, mas depois falo mais disto... Bem, uma carona foi muito engraçada. Quando partimos do Farol, pegamos uma carona com um senhor muito gente boa, que tinha um pequeno cachorro dentro do carro. Dou um doce pra quem acertar o nome do cachorro... Felipe. O mais engraçado é que ele falava muito com o cachorro e por vezes quando ele conversava com seu amigo... eu respondia.

Corme

Tínhamos acabados de descer de mais uma carona, estávamos num cruzamento na saída de uma cidade chamada Pontecesso. Pra ajudar a conseguir carona, eu tinha um pequeno cartaz escrito voluntário. Não demorou muito, parou um rapaz e perguntou pra onde iríamos. Disse que ia pra Laxe, uma outra cidade que também tinha trabalhos de limpeza.
Em seguida ele disse: “estou indo pra Corme, lá também necessitamos de voluntários”. Eu disse a ele que tinham nos falado que em Laxe a situação não era das melhores e que precisavam de muitos voluntários, por isto íamos pra lá. Ele respondeu que era verdade, nos desejou “Feliz Navidad” e se foi.
Peguei meu mapa, procurei por Corme e no mapa a cidade não aparecia. Logo depois ele voltou, pra nossa surpresa ele disse que nos levaria a Laxe... Foi muito engraçado, pois ele parecia ter se arrependido de ter nos deixado ali por não estarmos indo pra cidade dele. Aí resolveu voltar e nos levar até à Laxe.
Chegando lá procuramos pelo centro da defesa civil. Fechado. Fomos informados que depois de quase 2 meses ininterrúptos de trabalho foi decidido que tirariam, em Laxe, 2 dias de folga. Ato compreensível, ainda mais em se tratando de véspera de Natal. Depois disto não tivemos a menor dúvida de qual seria nosso destino...
Quando chegando à Corme, o lugar que não constava no mapa, haviam 5 voluntários, 3 espanhóis um tcheco e um francês. Uma grande diferença em relação ao grande número de voluntários que tinha encontrado em Malpica. Logo pude perceber outra diferença dali pra Malpica, talvez pelo número de pessoas que lá estavam, a população local era muito mais acolhedora.
Um grande exemplo foi a preocupação de todos em arrumar uma ceia digna de Natal pra nós, pois para eles, estávamos sacrificando uma Data tão especial em benefício deles.
Logo quando cheguei, tratavam-me como se já estivesse trabalhando ali por muito tempo... ali logo de cara, senti uma coisa pela qual nunca tinha passado, era admirado por pessoas que nem me conheciam.
À noite, ceamos todos juntos, com mais um polonês, um lituano, dois russos e mais dois espanhóis que chegaram mais tarde. Após a ceia, alguns de nós fomos pro centro do povoado, onde há alguns bares e que na “Nochebuena” funciona uma “discoteca”, onde todos se misturavam: pescadores, filhos de pescadores, algumas pessoas que vêm de outros povoados próximos e nós voluntários. Local também onde os moradores locais pareciam ter esquecido, pelo menos por alguns instantes a tragédia pela qual passavam.
Eu nunca tinha visto tamanha mistura dentro de um mesmo ambiente, todos faziam parte da mesma confraternização, todos dançavam com todos, a diversão era compartilhada por todo mundo, era possível dançar com os avós, com os pais, com os netos e é lógico com as netas... as legítimas galegas.
Foi um Natal como eu nunca tinha imaginado, como eu poderia pensar que algum dia eu ia ter uma ceia de Natal com pessoas tão diferentes de mim. Que eu poderia ouvir o relato de um pescador, dizendo que está proibido de fazer a única coisa que fez a vida toda sem saber por quanto tempo (falam em cerca de 5 anos) e ainda passar por uma balada muito louca e amanhecer à beira daquele mar azulzinho sem nem ter "tempo" de sentir o frio que fazia... só fui chegar ao alojamento, no Ginásio Municipal, as 9:30h da manha...
Uma situação que pra mim, marca a gratidão com que a população local nos tratava aconteceu no dia do Natal. Pra tentar falar com meus pais, fui ao balcão de um bar, peguei um telefone, coloquei algumas moedas e disquei o número de casa.
Na primeira tentativa, eu ouvia minha Mãe, mas ela não me ouvia. Na brincadeira foi metade do dinheiro que tinha colocado no telefone. Liguei novamente. Nesta consegui falar, fiquei muito feliz em falar com minha Mãe, mas o dinheiro caía muito rápido, por isto eu comecei a falar rapidamente e de maneira ansiosa, pois ainda gostaria de falar também com meu Pai.
A dona do bar, vendo a situação, começou a colocar moedas do próprio bolso no telefone, pra que eu pudesse continuar falando. Felizmente aquilo me deu tempo suficiente para falar um pouco com meu Pai. Depois fui agradecer e devolver as moedas. Ela se recusou a recebê-las e me disse que era um prazer ajudar um voluntário a falar com a família, pois sabia o que significaria pra mim, falar com eles naquele dia.
Com tudo o que aconteceu em Corme, eu resolvi ficar ali pelo resto da viagem...

O Trabalho

Logo quando cheguei, como já disse, ouvi muitos relatos sobre o trabalho de Chapapoteiro. Mas só trabalhando mesmo um pouco pra ver e sentir. Eu trabalhei apenas em lugares rochosos, onde tínhamos que tirar o chapapote que estava grudado nas pedras, ou então que estava depositado nas fendas entre elas.
À primeira vista só se podia ver as pedras todas "pintadas" de preto, mas é só chegar perto e colocar a mão na massa, que se vê o estrago.
O chapapote não apenas cobre as pedras, mas também preenche todas as fendas e buracos. E é daí onde tirávamos a maior parte dele. No primeiro dia de trabalho, em Malpica, em uns 15 voluntários tiramos mais ou menos 800 kg de chapapote das pedras. A partir de um momento olhava pras minhas pernas, que no começo do dia eram sempre brancas devido ao macacão usado por nós, e não via diferença delas pras rochas de tão negras que estavam.
No final deste primeiro dia, quando olhei pro lugar onde tinha trabalhado, tive a sensação de que não tinha feito nada... parecia tudo igual, tive o mesmo desânimo relatado por todos que tinham passado pelo trabalho.
O dia de trabalho que mais me impressionou foi por acaso o último. Estava em Corme, uma cidade fica incrustada numa região recortada com muitos rochedos e pequenas gargantas, que se formam entre os rochedos e o mar. São nestas gargantas que os pescadores locais, que na verdade são mariscadores “colhem” os mariscos, e era lá que estava concentrada a maior parte do chapapote do local.
Só se pode entrar nestas gargantas com a maré baixa, o que só ocorre por 3 horas num dia, e quando o tempo estiver bom, pois mesmo com a maré baixa as ondas entram nestes lugares e com mar bravo fica tudo mais arriscado. Por isto, somente os pescadores se aventuram nos priores locais, onde havia mais chapapote. Nós, os voluntários, ficávamos em lugares mais distantes da água, ou na “cadeia” que é responsável por levar os baldes cheios pra os “containers”, que algumas vezes ficavam bem longe do onde o chapapote era recolhido.
Neste dia fiquei bem no começo da cadeia, sobre uma pedra, onde eu e mais uma pessoa tínhamos que pegar os baldes na altura dos nossos pés e passar pra outras duas que ficavam na altura dos meus ombros. O trabalho na cadeia é muito pesado.
De onde estava eu podia ver os pescadores, com água pelos joelhos, encherem os baldes entre uma onda e outra, que comportam cerca de 50 kg, com uma velocidade muito grande devido a grande quantidade de chapapote. Parecia que um oleoduto que vinha direto do Préstige desaguava naquela pequena garganta. Neste dia tiramos muita coisa do mar, cerca de 5 ou 6 vezes mais resíduos que nos outros lugares...

Costa da Morte

Quando fui programar a viagem de final de ano vi, pela internet, algumas fotos da “Costa da Morte”. Mas somente chegando lá pode-se perceber o porquê do nome. Como já disse, o litoral é todo recortado, todo mesmo, e coberto por rochedos. Alguns deles muito altos, outros nem tanto, mas algumas coisas todos têm em comum: a violência com que as ondas se chocam contra as rochas. O mar ali é um caos. É possível ver ondas quebrando no alto mar, se chocando com formações rochosas distantes da costa, não se consegue prever de onde vem uma onda, elas chegam de todos os lados, não possuem um ritmo. Quando menos se espera, é possível ouvir o som de uma delas se arrebentando, é muito bonito...
Um dia estava visitando um outro farol, o Farol de Roncudo, bem pequeno e próximo à água. Resolvi bater uma foto, que ficou muito bonita por sinal. Posicionei minha máquina numa pedra, estava a uns 10m da água, programei o temporizador e pronto... Quando fui pegar minha máquina ouvi um barulho, ao olhar tinha subido uma cortina de água que vinha em minha direção, só deu tempo de proteger minha câmera pra ela não se molhar, já eu...

Os Voluntários

Como já falei, uma das coisas mais interessantes desta viagem foi conhecer muita gente e de todos os tipos. Em Corme, logo depois do dia de Natal chegaram muitos voluntários, mas dentre estas muitas pessoas criamos um grupo bastante unido de 13 pessoas.
Havia um casal de Granada, com uns 40 anos cada um, que via naquela experiência de dividir o espaço e o quotidiano com pessoas tão diferentes algo muito especial. Nada muito diferente de minha opinião, porém era encantador ouvir aquilo de um casal como aquele, que fazia uma viagem que muitos da minha idade e solteiros não tem a coragem de fazer...
Neste grupo havia, por exemplo, um Polonês, que trabalhou num circo russo e por isto passou toda a vida perambulando pela Europa, por onde o circo fosse. Ele agora largou o circo e vive com pintor na Itália. Mas como que tem pouco trabalho no inverno resolveu vir ser voluntário.
Havia um espanhol anarquista que tinha apenas uma mochila e nada mais. Ele não tinha casa nem família, passava a vida viajando pela Espanha e agora estava trabalhando como voluntário, pois ali tinha lugar pra dormir e comida...
Tinha o José, um sargento da reserva do exército Espanhol, que vivia embriagado, passou da noite do dia 24 até a manha do dia 26 dormindo, devido ao porre que tomou na véspera do Natal.
Tinha um russo, que agora vive em Barcelona, que não fala quase nada de espanhol. Um dia, fomos a um bar que tinha uma mesa de pebolin, o russo nunca tinha jogado aquilo na vida. Jogamos eu com o goleiro e a defesa e ele com o meio campo e o ataque, contra o Chico e um outro espanhol, o Jaime.
O russo passava o tempo todo fazendo “roletão”, ou seja, girando a fileira de jogadores, sem nem ver o que se passava, o mais engraçado era que ele só conseguia manejar uma fileira por vez e como não via nada do que se passava, eu tinha que avisá-lo quando a bola estava mais próxima da outra fileira, aí ele começava a girar a outra...
Tinha a Pepa, uma sevilhana, que é uma figuraça, de 37 anos, que trabalha como “barwoman” em umas discotecas, segundo ela há uns 15 anos. Eu a ouvi dizer que ali se sentia a pessoa mais feliz do mundo, pois era importante e só ali ela conseguiu valorizar o próprio trabalho... quando cheguei a Corme, ela estava lá há apenas alguns dias, mas já tinha virado amiga de todo mundo da vila. Na ceia de Natal acho que quase todas as famílias do lugar foram convida-la pra cear em suas casas. Mas ela decidiu ficar conosco mesmo, dizia que naquele momento aquela era sua família.

A Despedida

Mas dia 28 o exército chegou a Corme, por isto todos os voluntários teriam que partir no dia seguinte, quem fosse continuar trabalhando iria ser enviado à Malpica, outros iriam voltar pra suas casas. Ouvi o Anarquista falar que gostaria de procurar um lugar pra viver e um trabalho...
Este grupo acabou ficando bem unido. A “última ceia" , como ficou apelidado ultimo jantar que fizemos todos juntos foi muito especial, conversamos muito, brincamos uns com os outros, como se fossemos amigos de larga data. Tiramos fotos, e por sinal a única foto em que todos aparecem juntos. O Anarquista não aceitava aparecer em fotos. Mas como ele já tinha me conhecido melhor e disse que tinha certeza que aquela foto não sairia no jornal, aceitou aparecer nela. Vai saber o porquê desta aversão por fotos...
Depois deste jantar, alguns de nós nos animamos a sair, fomos a outra cidade, Pontecesso, por onde eu até já tinha passado. Esta noite foi muito legal, mais uma vez começamos pelos aos cafés. Passamos em vários deles, em cada um, uma pessoa do grupo paga uma rodada de bebidas, normalmente pequenos drinques de destilados que todos bebem juntos, num só gole.
Era bem legal, a Pepa sempre chamava o "barman" de canto e pedia pra ele fazer um dos drinques sem álcool. Ela dizia que não podia ver alguém num bar sem estar bebendo alguma coisa, o que é muito normal quando se pensa na profissão dela. Pela primeira vez na minha vida eu podia dizer que estava bebendo com os amigos...
Depois de passar em todos os cafés da cidade entramos numa discoteca, e pra minha surpresa encontrei uma das pessoas que tinha me dado carona quando eu ia pra Ponta de Nariga.
O dia seguinte foi bem triste, sabíamos que nunca mais íamos nos ver. Cada um foi tomando seu caminho, o Chico continuou a viagem e foi pra Santiago de Compostela. O Anarquista e o Polaco foram pra Malpica. Sobramos em Corme, eu o Jaime, o Casal de Mochileiros, o José, que íamos juntos até La Coruña e a Pepa, que logo deu um abraço em todos e desapareceu porque disse que não gostava de despedidas.
Quando o ônibus estava saindo de Corme vimos a Pepa sentada a beira da praia. Foi de certa maneira bem triste, tenho esta cena bem guardada na minha cabeça...
Quando chegamos à La Coruña me despedi do resto do grupo. Eu estava completamente realizado com minha viagem, que por apenas um detalhe não poderia acabar naquele dia. Passei mais uma noite ali, pois tinha descoberto em Corme, que La Coruña tem sim coisas muito interessantes...

Nesta última noite quando me deitei pra dormir, me dei conta que tinha passado quase 10 dias sem ter meu coração apertado por estar longe de casa, longe das pessoas que mais amo... Eu me lembrava de todas as pessoas, pescadores, comerciantes, entre outros que me deram carona ou informação que durante a viagem sempre vinham me agradecer pelo trabalho de voluntário. Durante estas lembranças eu ria... pois aquelas pessoas não faziam idéia do que tudo que aconteceu naqueles dias significou pra mim e que o trabalho tinha sido apenas uma pequena parte daquela grande aventura...


- Felipe, o Chapapoteiro

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