Nesta vida não tenho muitas conquistas materiais, porém as histórias são diversas. Quem eu seria sem minhas histórias? Não seria eu.

domingo, 9 de março de 2008

Aventura Transmontana


Porto, 23 de fevereiro de 2002, com muita vontade de voltar ao Brasil

Não sei se já aconteceu com algum de vocês, mas eu sempre tive a vontade de botar uma mochila nas costas e sair pra viajar, meio que sem rumo, sem compromisso, sozinho, pra fazer apenas o que se tem vontade.... pois bem, nesta terça feira aproveitando que estou aqui em Portugal, num país que fala a minha língua, ou melhor, que eu falo a língua deles, resolvi botar minha mochila nas costas, tomar um ônibus e ir... Fui à Trás os Montes, região portuguesa das mais pobres, mas também das mais bonitas. Ela ganhou este nome por ficar, para quem vem do litoral, atrás de uma serra, ou seja, ela fica atrás dos montes. Esta região é bastante montanhosa, lembra um pouco o interior de Minas Gerais, mas com vilazinhas ainda mais perdidas e pequenas. Chegar a Trás os Montes é como chegar ao passado...
Minha primeira parada foi em Bragança, cidade da Família Real Portuguesa na época do império. Mas nem fiquei muito tempo lá, queria mesmo era passar a noite numa pequena aldeia próxima à fronteira com a Espanha.
Como o único ônibus que ia a direção a esta vila só saía as 6h da tarde (era ainda meio dia) e que o tal ônibus passava numa outra vila a aproximadamente 20 km de onde eu estava indo eu resolvi tentar pegar carona... no começo eu tive um pouco de receio, afinal seria minha primeira carona num outro continente. Até hesitei um pouco em começar a pedir, apenas olhava os carros passando e continuava andando... até que apontou um jipe com um senhor dentro. Ai eu pensei: “é esse!” Dito e feito, o tiozinho me levou até onde o ônibus levaria. Ele era angolano, uma verdadeira figura, falava pra caramba. Me perguntou muito sobre as brasileiras... falou mal das portuguesas... ele tinha saudade das africanas.
Ao chegar nesta vila, peguei a estrada que ia pra Moimenta (a aldeia onde queria passar a noite), comecei a andar, andei por quase uma hora. Nesta altura, pedir carona em Portugal já era a coisa mais normal do mundo, mas pela aquela estrada não passava quase nenhum carro e os que passavam não paravam. Até que veio outro jipe, de novo com um tiozinho dentro, mas este parecia com aqueles portugueses estilizados, com boina, paletó xadrez, grandes costeletas, só faltou mesmo o bigode... ele me deu carona até a vila, pois ele era de lá. Foi muito legal, no caminho ele foi me contando um monte de historia sobre o local, por vezes saiu da estrada pra me mostrar alguns mirantes com vistas bonitas. O senhor era boa gente, ele só não conseguiu entender o que eu queria fazer sozinho naquela pequena aldeia (as cidades pequenas aqui em Portugal são chamadas de aldeias). Chegando perto de Moimenta ele me disse: “se por acaso tu não conseguires lugar para dormir, podes bater lá em casa”. Infelizmente a senhora que ele mesmo me indicou tinha quartos livres, ou melhor, tinha todos os quartos livres, afinal não haveria outro maluco a viajar por aquelas bandas nos gelados dias de inverno transmontano. Minha dormida seria numa casinha de pedra, pequenina e muito fria. Em toda a minha vida eu nunca tinha dormido com tantos cobertores, no total foram seis.
Eu pretendia ficar dois dias ali, pra conhecer o Parque Natural de Montezinhos, mas como neste primeiro dia não tinha visto nada de muito especial resolvi, no meio de uma caminhada, ir embora no dia seguinte. Durante esta caminhada me sentei numa pedra, dali eu tinha uma bela vista da aldeia, com suas ruas, casas, muros todos de pedra. É de se espantar como ainda hoje podemos encontrar lugares tão perdidos como aquele. Naquele momento o tempo pra mim parecia ter parado. Acho que esta era a magia do lugar... fazer o tempo parar. Mas como não queria permanecer parado no tempo, a decisão de sair dali logo cedo no dia seguinte foi acertada.
Antes de dormir, fui assistir a um jogo em um boteco, ou melhor, uma tasca, a única do lugar. Foi muito engraçado, pois acho que era uma das poucas TV de Moimenta, já que estava lotado de velhinhos e alguns garotos. Eu pude perceber que não há pessoas da minha idade nestes locais. Atualmente todas elas saem das aldeias, vão pra cidade pra estudar ou pra trabalhar... Só sobram mesmo os velhinhos ou as crianças que provavelmente só estão esperando pra também sair.
No dia seguinte peguei carona com o ônibus escolar até uma vila “mais pra frente”, a mesma onde a primeira carona tinha me deixado no dia anterior. Dizem por ali que a igreja mais antiga da Península Ibérica está lá. Eu a visitei... parece muito velhinha mesmo, agora, se realmente é a mais antiga de todas eu já não sei.
Durante o trajeto de ônibus entre Moimenta e Vinhais (a vila mais pra frente), eu vi algumas coisas interessantes. Primeiro por ser um “ser estranho” sentado ali no meio daqueles estudantes. A todo o momento podia ver muitos cochichos e olhares curiosos em minha direção... Outra coisa que me chamou atenção aconteceu quando vi uma garota, que deveria ter uns 15 anos, aguardar, com um par de brincos de argola nas mãos, o ônibus sair de Moimenta para somente depois os colocá-los, como se o ato de colocar brincos de argola fosse proibido no lugar. Isto pra mim foi mais uma prova de que o tempo por ali tinha parado há “alguns” anos...
Fui de ônibus também até Bragança, passei toda a manha lá, conheci a fortaleza, o Castelo da família real, tudo muito bonito. Uma característica muito boa destes lugares é que como são muito pequenos, conhece-se tudo muito rapidamente, mesmo estando a pé. Neste mesmo dia fui a Miranda do Douro, uma pequena cidade que fica a beira do Rio do Douro. Quando eu digo a beira, significa a beira mesmo! Nesta altura este rio corre entre penhascos muito altos. Eu não sei dizer qual a altura, mas eles são muito grandes e bonitos. Foi a primeira vez que vi algo daquele tipo. É lindo! De um lado do rio é Portugal e do outro Espanha. Neste dia eu fiquei num hotel com a vista pro rio... No dia seguinte, eu queria ir até uma barragem, uma pequena hidroelétrica que fica a uns 25km de onde estava...
Resolvi fazer o percurso a pé, sai da cidade as 9:15h da manha, um pouco furioso é verdade com a qualidade dos serviços prestados no ponto de informações turísticas do local, onde só tive uma resposta para todas as minhas perguntas: “Isto eu não sei lhe dizer, opá!”. Mas sem problemas, peguei a estrada que desce o rio e fui-me embora. De muitos lugares da estrada é possível se ver os penhascos, mas não o rio, pois ele está lá em baixo... foi muito engraçado, pois em todas as aldeias que passava todos os velhinhos e velhinhas ficavam me olhando. Acho que não é muito normal um maluco andar de mochila nas costas por ali... quando já estava a quase duas horas andando, resolvi sair da estrada e chegar perto do rio.... foi impressionante! Eu caminhava por uns campos com mato até o joelho mais ou menos. Estes campos iam descendo um pouco em direção ao rio, no meio desta descida alguns muros todos de pedra. Fui andando e pulando estes muros até uma hora que vi uma grande pedra. Andei até ela e subi. Ao subir era possível ter uma vista fabulosa, das mais belas de todas as que já tive, e olha que já fui a lugares bem bonitos. Era um penhasco muito alto. Em um canto do meu horizonte eu via Miranda do Douro, bem pequenininha. Eu podia ver todo o percurso do rio recortando os penhascos até ali. Do outro lado o rio continuava seu caminho e bem ao fundo. Seguindo o rio, já do lado espanhol, eu avistava uma pequena igrejinha, mansinha sobre um dos grandes paredões.
Dali, eu ainda podia descer um pouco mais em direção a duas pedras. Deitei-me sobre uma delas e rastejei em direção a sua ponta, quando eu pude olhar pra baixo foi incrível! Não havia nada, somente o rio bem longe... essas duas pedras apontavam pra dentro do desfiladeiro. De tão maravilhado que estava, não fiquei nem com medo.... fiquei um tempão ali, vendo alguns pássaros que voavam a baixo de mim, ouvindo um ruído que o vento fazia, que parecia um “urro” bem baixo e constante.... nesta hora fiquei triste por estar só, por não ter ninguém pra compartilhar aquilo comigo, pensei em todas as pessoas que conheço, principalmente nas mais próximas... aquele lugar ficou marcado pra mim, na minha cabeça é o meu lugar. Ele foi descoberto por mim na terra dos descobridores.
Depois de algum tempo voltei pra estrada, me coloquei a caminhar novamente. Andei por mais um tempo. Como estava muito cansado, resolvi que se passasse um carro pediria carona. Uma mulher me ofereceu uma carona, que foi bem curta. Devo ter avançado uns 2 ou 3Km. Ao descer do carro vi uma placa: “BARRAGEM DE PICOTE 10 Km” (era o lugar onde queria visitar). Já era quase uma da tarde, estava cansado, a mochila parecia pesar uns 50 Kg. Voltei a caminhar, afinal se eu ficasse parado ali não veria barragem alguma e passar um segundo carro na sequência por aquela estrada seria um milagre muito grande pra este viajante...
Em todo meu caminho haviam cabos de alta tensão paralelos a estrada, que até então estava também paralela ao rio. Uma hora eu vi que ela começou a se distanciar do rio enquanto os cabos continuaram a seguir o rio. Resolvi sair da estrada e seguir os cabos. Se ia dar certo eu não sei... mas como foi gostoso ter aquela sensação de liberdade, de poder fazer o que bem se quer, de arriscar sem ter medo de, caso alguma coisa dê errado, ouvir: onde você meteu a gente?!?!... fui andando por campos, cruzando oliveiras e parreiras (as uvas do vinho do Porto vêem dali), pulando muros de pedras, até que depois de algum tempo cheguei a uma outra estrada.
Eu já estava bem perto da barragem, tinha cortado um belo caminho. Perto da barragem a estrada começou a descer. Neste momento eu resolvi deixar a estrada e andar em direção a um ponto alto, pra bater uma foto da barragem vista de cima. Me dei muito mal, primeiro porque tive que fugir de três cachorros, com mochila nas costas depois e de ter andado por quase cinco horas. Depois de me despistar dos cachorros eu pensei: “não vou voltar por aqui”. Aí veio pior, me meti num morro cheio de arbustos secos e com espinhos que me deixaram todo arranhado. Passado algum tempo metido ali consegui chegar num lugar bem alto e avistar a barragem. No final todo o sacrifício e todos os arranhões valeram a pena. A vista é realmente muito bonita.
Desci este morro, por um outro caminho pra não me encontrar novamente com os três cachorrinhos, cheguei até a estrada e caminhei até a barragem. Cheguei lá perto das três da tarde.
A barragem foi construída num ponto muito estreito entre dois penhascos, por isto ela é maior em altura do que em comprimento. Antes dela, há um lago calmo onde pode-se ver o reflexo de toda aquela imensidão de rochedos, perecia mesmo um grande espelho, ainda mais sublinhado pelo dia claro de céu azul. Depois da barragem aquela calmaria do lago se transforma numa pequena e turbulenta linha d’água que corre perdida entre os paredões, que deste lado são, relativamente ao nível da água, muito maiores.
Depois de um tempo ali e uma lata de pêssego em caldas pra dentro da barriga comecei a voltar. Pra onde eu não sabia. Minha única meta do dia tinha sido alcançada e o que eu ia fazer depois disto não fazia parte dos meus planos. Eram três e meia da tarde, haviam 4 carros estacionados na barragem. Aqueles carros eram minha única opção de carona pra algum lugar, pois nenhum outro carro passaria pelo local (a estrada terminava na barragem). Caminhava bem devagar... o segundo carro que passou me deu uma carona. Era um carro dos correios, que me levou a uma vila no meio do caminho pra algum lugar. O detalhe foi que paramos em quase todas as casas pelo caminho, pro cara entregar as correspondências... Fui acabar este dia em Mogadouro, onde conheci mais uma fortaleza e mais um castelo, além de comer uma magnífica omelete de queijo!
Só me faltava um objetivo a cumprir nesta viagem: chegar ao Castelo de Algoso. O castelo fica numa aldeia com o mesmo nome. Este lugar é completamente fora de mão. Não há ônibus, a estrada é muito velha e nela quase não passam carros. Logo de manha comecei a andar. Tinha quase 20Km pela frente e o dia todo pra chegar lá. Por sorte logo peguei uma carona, que me deixou a uns 3Km do castelo. A primeira vista do castelo já impressionou. Ele estava lá, pequenino bem no alto daquele morro de pedras. Só era possível ver seu contorno naquele céu azul. O castelo foi construído sobre o morro mais alto da região, que fica a 500m de altura sobre um rio que corre num vale logo abaixo.
Depois de subir este morro e chegar ao castelo encontrei um senhor muito velho que andava apoiado numa bengala. Fiquei um tempo conversando com ele. Ele me disse que sempre subia ali pra passar o tempo, apreciar a paisagem. O tempo ali voltou a parar. Ele saiu e fiquei sozinho no castelo. Andei por suas ruínas, imaginei guerras e realmente apreciei a paisagem... ao ir embora, já fora do castelo, avistei o senhor num outro ponto do morro. Ele se virou pra mim e com um grande sorriso naquele rosto bem velho me acenou com um dos braços... eu retribui o gesto e também o sorriso.
Voltei a caminhar extremamente realizado com minha viagem, que pra mim terminou ali...


De resto foi pegar outra carona, mais um ônibus e voltar ao Porto todo sujo, alguns quilos mais magro, mas, sobretudo, muito contente! Abraços a todos e muito obrigado a quem contribuiu de alguma forma para que eu pudesse fazer esta viagem.

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