Nesta vida não tenho muitas conquistas materiais, porém as histórias são diversas. Quem eu seria sem minhas histórias? Não seria eu.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Viva a desobediência


Jogo futebol desde muleque. Mesmo tendo treinado em vários lugares quando criança, considero que o que aprendi de melhor foi na rua. Onde jogava o dia todo. O conselho mais importante de todos veio de meu pai, ao ver que tinha emprestado o pé direito de meu tênis pra um amigo que chegara descalço pra pelada:

- Por que você emprestou seu seu tênis pra ele?
- É que ele chuta com a direita e eu com a esquerda, assim nós dois podemos chutar!
- Pois, calce seu tênis no pé direito e comece a chutar com ele também...

Desde que cheguei por aqui tenho treinado com uma equipe da terceira divisão amadora da Holanda. Com apenas duas divisões profissionais, é possível dizer que este é o quinto nível do futebol holandês, que mesmo regionalizado apresenta um nível técnico bastante bom.

O jogo por aqui, seja na primeira divisão profissional ou na terceira amadora, é uma correria. Quando um holandês assiste um jogo brasileiro ele diz que chega a ter sono, pois “jogamos em camera lenta”. A regra aqui é passar a bola. Não dar o terceiro toque é quase uma obrigação. Também há a questão relacionada a saúde: o terceiro toque na bola é muitas vezes acompanhado de um carrinho, principalmente quando estamos de costas pro marcador – que saudades dos campos secos e duros do Brasil inibidores de carrinhos dispensáveis. Não sou fominha, nem fazedor de truques, só que por vezes me encho de ficar jogando a dois toques e fico com a bola uns segundos a mais que o normal (por aqui). Sábado passado não tínhamos sequer jogado 30 minutos de uma partida amistosa quando meu treinador me sacou: “Você ia acabar machucado!”. Hoje posso reconher o quanto é difícil pra um jogador brasileiro se adaptar num outro país. Sinto isso a cada treino... acada jogo.

Por vezes fico frustrado por não jogar como eu gostaria. Sendo um pouco melhor seria ainda mais desobediente. Mandaria com mais frequência os dois toques pra'quele lugar (mas não posso negar que as vezes ele é muito importante e que aprendi bastante jogando por aqui). Ao ser questionado pelo treinador ou por meus colegas, por querer ficar com a bola, segundo eles, por tempo demais, poderia dizer: “futebol não é assim ou assado... futebol é bola na rede!”. Poderia deixar com maior frequência os zagueiros falando sozinhos. Meus tornozelos não sofreriam tanto... Infelizmente não sou melhor que sou, mas felizmente continuo desfrutando de correr atrás de uma bola (mesmo dando mais passes de primeira que gostaria), sem falar das intermináveis discussões e análises no bar do clube depois dos jogos, daquela dorzinha muscular do dia seguinte e de tudo que vive um boleiro amador.

Hoje percebo que meus conterrâneos que deram certo por aqui podiam fazer no jogo tudo aquilo que eu gostaria, eram desobedientes de boca cheia... o mais interessante é que vários dos melhores jogadores holandeses que conheço parecem não ter aprendido a jogar de acordo com as regras daqui. Por isso acho engraçada a idolatria por este modelo, por esta cartilha.
Hoje continuo vendo a Holanda como um país formador de muitos jogadores, mas acredito que eles só são o que são, pois são (ou foram) desobedientes e não seguem (ou seguiram) com frenquência as regras exigidas por aqui.


Gullit e Rijkaard: filhos de imigrantes. Cresceram jogando futebol nas ruas de Amsterdam. Local preferido: uma praça aqui perto de casa.

Seedorf e Davids: nascidos no Suriname, imigraram pra Holanda quando crianças, tenho certeza que as ruas e os Guetos daqui foram suas maiores escolas.

Cruijff: Maior nome da história do futebol Holandês, também crescido em Amsterdam. Afirma constantemente que as crianças devem jogar mais futebol na rua, pois na rua são feitos os jogadores. Se dispôs ano passado a liderar um grupo de trabalho pra tentar tirar o Ajax do limbo que o clube se encontra. Uma de suas grandes ambições era remodelar toda a escola de formação de jogadores do clube. Seu plano não foi aprovado pelo futuro treinador do Ajax, Van Basten.

Van Basten: Atual treinador da seleção. Pelas discussões que acompanhei sobre o caso envolvendo o Cruijff e Ajax, acho que ele segue a cartilha (Toda regra deve ter sua excessão). Mas talvez seja por isso que teve muitos problemas com vários jogadores da seleção (ou que fizeram parte dela): Seedorf, Davids, van Bommel, Nistelrooy, Kluivert...

sábado, 5 de abril de 2008

Já não havia mais tempo...


Minha passada na Noruega pra visitar meu irmão, me fez retornar aos meus primeiros dias por aqui, quando o holandês ainda era uma coisa do outro mundo. O norueguês, como o holandês, é um idioma no qual não compreendemos uma palavra sequer, no qual ouvimos sons que acreditávamos antes não existir (alguns fonemas holandeses não consigo pronunciar até hoje).
Foi engraçado ouvir as pessoas na rua e tentar imaginar sobre o que estavam falando, ou entrar novamente no mercado e ver que não era possível compreender as instruções de preparo de uma comida congelada... mas foi engraçado por ser passageiro e por saber que esta fase aqui na Holanda pra mim foi superada (fico desejando sorte ao meu irmão!). Atualmente, acho que eu e a Susanne conversamos mais em holandês que em português.
Infelizmente eu não fiz ainda um bom curso de holandês, ainda tenho problemas no trabalho, quando tenho que escrever documentos importantes, ou fazer um pequeno texto pra promover algumas das nossas atividades no jornal do bairro. Mas até agora venho levando tudo numa boa e sentindo ainda um bom desenvolvimento a cada dia.
Mas, acredito que mesmo se tivesse feito um bom curso, teria também os mesmos probleminhas vividos no dia a dia de quem aprende um novo idioma (sugiro a leitura de um outro texto meu: Bonequinha vermelha).

Como no português, por vezes, diferentes letras, quando pronunciadas, acabam tendo em determinadas situações um mesmo som. Como por exemplo: escrevemos leite, mas (com excessão de algumas regiões do Brasil) falamos leiti. A Susanne sempre ficava com a cabeça quent(i) quand(u) eu dizia: “olha... esta palavra é escrita com E e não com I”. Ou, “e esta é com O e não U”
Aqui também acontece disto... por exemplo: um T e um D, quando aparecem sem vogal na sequência, são pronunciados quase da mesma maneira. Só por referência, todos os verbos, quando conjugados na segunda e terceira pessoa do singular terminam ou com T ou com D mudos. Por um lado é sempre uma loucura: “devo escrever com T ou com D?” Mas por outro lado facilita... afinal na hora de falar não precisamos pensar muito.

Como no trabalho tenho muito contato com crianças, acabo sendo obrigado a melhorar meu holandês diariamente, pois eles, diferentemente dos adultos, sempre reagem aos meus erros. Muitas vezes até me ajudam. Se bem que já aconteceu de crianças tirando um sarro bem forte da minha maneira de falar, ou de alguns erros que cometia. O mais incrível é que isso acorre na grande maioria dos casos com filhos de imigrantes, os quais os pais que vivem aqui por muitos anos falam um holandês incrivelmente pior que o meu, ou sequer falar holandês.

Pois bem, outro dia estava conversando com um grupo que ia jogar um partida de futebol, na qual um deles deveria ser o árbitro. Antes de escolher um candidato, fiz um discurso sobre a maneira como o pequeno árbitro deveria se portar... foi aí que veio a pérola.
Árbitro aqui é: SCHEIDS. (não tentem pronunciar... não vai ficar sequer parecido, haha) Este D do final, por não ter uma vogal depois dele acaba tendo o som parecido com o T.
Pra construir um verbo a partir do substantivo colocamos aqui EN ao final da palavra.
Quando fui falar que o árbitro deveria “arbitrar seriamente”, sei lá por qual motivo me esqueci do S do SCHEIDS, adicionando apenas EN ao final da palavra. Com isso, aquele som em comum de D e T deixou de existir (o som em comum deveria se transformar em DEN ou TEN). Assim, tive que, numa fração de segundos, optar entre D e T ... veio a última.
A palavra pronunciada foi SCHEITEN, em vez de SCHEIDEN, que na verdade deveria ser SCHEIDSEN (se não tivesse me esquecido do S). E o que disse foi: “O árbrito vai ter que SCHEITEN com seriedade!”
Eu tentei me corrigir, mas já não havia mais tempo... a turma, uns 16 garotos de 8 a 12 anos, veio abaixo.

SCHEITEN em holandês significa cagar. Não é nem algo mais infantil e puro como fazer cocô, ou mais formal como defecar... eu disse mesmo é: “o árbitro vai ter que cagar com seriedade!”